sandra aka margarete ~ acknowledgeyourself@gmail.com

a minha avó, a minha mãe e eu

É inevitável, não vale a pena pensar, não vale a pena não pensar.
A todos os 23 de Dezembro acontece a mesma coisa. Acordo, abro os olhos e umas poucas lágrimas tímidas caem.
Lembro-me dela.
Maria de Jesus Ferreira.
A minha avó velhinha.
Conheci-a quando tinha 4 anos, é uma história de amor à primeira vista.

Maria de Jesus Ferreira não foi à escola, costureirinha, casou, foi viver para uma aldeia longe da sua, teve seis filhos, 3 rapazes e 3 raparigas. Viveu traições, viveu a Poliomielite duradoura do seu filho A. (meu pai), viveu a esquizofrenia do seu filho J., viveu a morte da sua filha mais nova, aos 9 anos, viveu. Era uma mulher profundamente triste à qual era possível ouvir gargalhadas sonoras em momentos de fino humor.
Com a minha avó aprendi os silêncios. E o sorriso após o silêncio.
Brincávamos, organizava baptizados às minhas bonecas, fazia-lhes vestidos, aliás, fazia o enxoval todo, ainda tenho a colcha e os lençóis que me fez. Fazíamos romarias a fingir. Levava-me para o jardim de rosas que tinha no meio da vinha e ajudava-me a fazer ramos para a minha mãe. Apanhávamos figos, também para a minha mãe. Gostava particularmente quando ela fazia pão com sardinhas na casa do forno, ou quando fazia cevada na bilha de barro, ao lume, e lhe punha uma brasa dentro. Eram dias seguros e felizes.
Às vezes, pedia-lhe para me mostrar as coisas da tia. Uma espécie de memorial para a sua filha morta. Lá íamos, com o ar solene devido ao momento. Desfazia os laços brancos que encerravam cada um dos saquinhos e ia-me explicando… os livros da escola, as botas, o vestido da primeira comunhão, a ardósia. Sorria. E ficávamos em silêncio. As mãos dela voltavam a fazer laços, cuidadosamente. E ficávamos em silêncio.
A minha avó dava-nos a bênção.
A minha avó fazia-nos sentir, a cada um, filhos e netos, que somos especiais, mas nunca nos fez sentir que somos os mais especiais. Nunca tive ciúmes dos meus primos e estou certa que o mesmo aconteceu com eles. Não convivia na aldeia, nunca se lhe ouvia comentários sobre as vidas alheias.

À medida que fui crescendo, fui, naturalmente, percebendo a vida dela enquanto, eu própria, mulher. O meu amor por aquele ser cresceu sempre.
Quando a vida me contrariava, fugia para ela e agarrávamo-nos as mãos uma da outra, em forma de conchas.
Comecei a usar carrapito para poder parecer um pouco como ela. Nunca deixei de ter uma saia plissada no meu guarda-roupa. Quando ia lá a casa, pedia-lhe sempre para me mostrar o seu xaile. Um xaile enorme, azul-escuro, de pelúcia. Está aos pés da minha cama e, nas noites de desalento, é o que uso para combater o frio interior. Outra coisa que calhou em partilhas ao meu pai foi a sua cómoda do quarto, que agora habita o meu quarto. Nunca consegui raspar um pouco de cera que fosse da cómoda, porque no dia em que decidi fazê-lo ao retirar o papel duma das gavetas dei com escritos a lápis onde se lê, em caligrafia de criança - Maria do Céu - o nome da sua filha morta, saberia a minha avó que aquilo estava escrito ali? Arrumei as minhas ferramentas de restauradora de móveis.
Um dia, o telefone tocou e eu ouvi as palavras - a avó morreu. A avó morreu. No simbólico dia da mãe de 1999. A avó morreu.
Pus as minhas mãos sobre as dela, mas eram frias. Pus os meus lábios sobre a sua pele morta. Fria. A avó morreu.
A dor encravada.
Já não posso estar com a avó velhinha sempre que quiser.
Quisera que a minha avó vivesse para sempre.
Como todas as crianças que gostam de ouvir histórias sobre a sua existência, eu gostava quando me contava sobre o dia do seu 60º aniversário, o dia em que lhe nasceu esta neta.
É hoje, o dia do nosso aniversário, fiz um carrapito, vesti a minha saia plissada. Comecei o dia triste, pensando fatalmente que o máximo que posso fazer é contar um pouco sobre quem foi essa mulher e pôr flores brancas sobre um túmulo de mármore preto. Talvez seja. Voltei atrás, antes de sair de casa, soltei o cabelo e vesti as eternas calças de ganga.
Falei com a minha mãe - agradeci-lhe a vida.
Neste momento, sinto-me cheia por dentro, por ter o privilégio de ser neta de Maria de Jesus Ferreira e filha da Ilda Simões da Graça Ferreira da Cruz.

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