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O Dia da Espiga

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Não vou mentir, nem pôr com meias-medidas: ser filho de emigrante é difícil. Na melhor das hipóteses, o que nos pode acontecer é ter este maldito sentimento ambivalente de se querer fazer a vida em ambos países. E isso sou eu e mais alguns. Há pessoas a quem a coisa fica mais difícil, mas não me apetece falar do contrário de fácil. Apetece-me falar de rir e do sentimento de se ser a sorrir.
Ontem foi dia da espiga o que, apenas pelo nome, me remete a 1981, ano em que vim com os meus pais e irmã viver para Portugal. Lembro-me dos ramos de espiga nas minhas primeiras observações das casas. E lembro com tanta ternura os nossos passeios do dia da espiga. Ah, benditas professoras que apanhei naquela escola primária. Era tudo a preceito, até os puxões de orelha, isso é conversa para outro dia mas quero já deixar bem claro que só levei um e foi merecido, vá.
Cheguei de Toronto, duma grande escola de cidade com as condições físicas que as nossas escolas começam a ter agora, essas tão mal-amadas do “projecto escolar” e fui para uma escola de aldeia com duas salas. E era linda, eram ambas lindas, as minhas escolas da primária (estão agora a ver o drama de ambivalência desta moça?). O chão espinhado de madeira, as janelas enormes, a salamandra ao canto, as carteiras ainda com tinteiro, os cheiros, oh, as madeiras, o cheiro de lápis de cera cisne e lápis viarco e papel e borrachas pelikan, e o pinhal que entrava pela frente da escola e os eucaliptos por detrás, e nós de bata lavada, como gostei daquilo, vivi tudo ao pormenor. E as brincadeiras. O ringue, o lobo na serra, o macaquinho de chinês, o limão, e a triste viuvinha.
A vida portuguesa cedo nos mostrou o choque e eu não estava distraída, vi bem a minha mãe e a minha mana, cheguei a rezar à noite para que voltássemos para o Canadá, precisava de as ver felizes de novo, mas o ar que recebeu as minhas orações não me ouviu e nós fomos ficando. E eu sem dificuldades de adaptação. Ia dar de comer aos porcos com o meu avô e brincava horas sozinha porque os outros meninos não eram autorizados, tinham de ir para as fazendas, ou tratar de irmãos mais novos ou, simplesmente, aproveitar o resto da luz do dia para fazer os trabalhos de casa e evitar o petromax. Mas era feliz, tinha muito para fazer lá pela aldeia. Até um cão eu passei a ter, e depois outro e outro e, pronto, nunca mais deixei de ter bichos na minha vida.
E adorava a escola e os seus rituais: pedir a bata à minha mãe quando a outra ia para lavar, o saquinho de pano onde levava o papo-seco com manteiga ou marmelada, a minha mala da escola, o leite que nos davam na escola numa caneca de plástico, havia de várias cores. E, depois, a envolvência dos dias festivos. Adorei aprender os costumes de cada data. E as palavras, lembro perfeitamente de aprender a palavra “consoada”, por exemplo. O dia do bolinho e a saca do pão mais bonita, imaculadamente lavada e impecavelmente engomada. E os dia da espiga. A sensação era sempre de que vinha mesmo a calhar. A Primavera iniciada, a vontade de estar mais tempo no recreio do que na sala de aula, a eternidade de tempo que ainda faltava para o início das férias grandes (em Junho, oh santa noção do tempo que as crianças têm), todos estes factores juntos faziam do dia da espiga um acontecimento maravilhoso. Lá íamos nós para a escola nessa manhã, com outro acordar. E eu sabia que era uma coisa que vivia porque vim para Portugal. O resto, o passeio pelo campo com as professoras, podem imaginar, basta aceder ao vosso imaginário bucólico. Naturalmente, ao voltar para a sala de aula, fazíamos um desenho e escrevíamos uma redacção: O Dia da Espiga.

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